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1918*2010

Linda senhora,

Já não sinto o cheiro delicioso da manhã regado por teu mingau... já não se tem couve picada bem fininha... já não brilham as bocas do fogão... Pra onde foi? São noventa e dois anos desde o teu nascimento, e hoje, sofrem pelo teu falecimento. As lágrimas são pra guiar teu caminho e aliviar corações comprimidos... A benção minha vó! Ecoa a cadeira de balanço no canto do quarto e a missa finda-se no rádio. Nem o bem-te-vi no fim te visitou. Também calo-se em respeito aos teus cabelos brancos e sua pele enrugada.

Negra Ana, negra guerreira, negra matriarca, negra Mariana... uma canção... Vai-se e deixa uma legião de negros fortes. Filhos, netos e bisnetos. Herdeiros de Seu'Jão e Donana. Herdeiros de bons princípios... Já não se ouvirá a agulha de crochê raspando no dedo e os chinelos arrastando pelo chão... aliás, há algum tempo que já não se ouvia, mas a lembrança guarda-os com precisão.

Nos últimos dias ecoava pragas, preces, canções, às vezes, uma "ai, ai, ai, Ana Maria" e a filha torna-se mãe. Birras, choros e fraldas... um dia voltamos a se crianças e não é rejuvenescedor!

Embora já não soubesse quem éramos, sempre víamos em seus olhos ou falas um feixe do real, uma memória resgatada. A vida girando dentro de sua mente. Mesmo doente permanecia sábia, sempre atenta ao ambiente, irritando-se, às vezes, com a tagarela a passar no corredor.

Saudades, senhora!

É o que já sentíamos mesmo antes do adeus. É o que sentiremos quando já não restarem muitas lembranças, quando elas deixarem de ser tão nítidas.

Nossa geração nem chega aos pés da sua, não temos pretensão de viver tanto.Não seríamos capazes! Hoje já não se sabe o que foi feito ontem, pense em quase cem anos! Portamos Alzheimer desde o berço...

Aos teus bisnetos, trinetos e tatarenetos, deixaremos sua memória, Dona Ana Paula... (dizia que seu nome era de menininha) e em sua homenagem temos algumas "Paulas" existentes na família.

São 92 anos e tenho só 27 o que mais posso dizer...

A sensação de perder nunca é feliz. O ser humano sempre quer vencer, driblar o curso da vida, mais o corpo nasce, vive e morre, indiferente ao nosso querer. A morte do outro é natural, a do nosso é carregada de por quê. Nos preparamos mas nunca estamos prontos, nunca estaremos, embora, morrer seja uma certeza.

Sabíamos que morreria, e a cada nova visita desejávamos que sim, porque pior do que a morte era vê-la sofrendo em uma U.T.I. de doutor em doutor e exames médicos, sem que estivéssemos lá, integralmente com você.

Disseram-me, em outro contexto, que estavam morrendos todos os grandes mestres. Sim, eles estão morrendo!
"Bença, vó"
Da neta de Ana Paula,
Milene Paula

Comentários

  1. Que linda homenagem, Mi, cheia de poesia... Força, e que a vida e as gerações sigam... Grande beijo!

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